Projeto Inspirações
Seja bem vindo ao Projeto Inspirações
Aqui compartilho meus textos produzidos e inspirados no dia a dia em sala de aula
Sara diz que é marrom - Por Marily
Cabelos crespos, dois aninhos e dez meses, moradora de Florianópolis, matriculada na rede municipal de ensino. Sara chegou pra sua mãe e disse: mãe, eu sou marrom! Sara parece definir seu tons de pele como marrom com muita naturalidade que supostamente veio de observações em uma de suas bonecas.
Conta sua mãe que Sara em seu aniversário, ganhou de presente da sua madrinha uma boneca preta. Desse dia em diante começou a observar a boneca que chamou de “petinha”. Conversa vai, conversa vem e Sara percebeu que sua boneca era marrom e não “petinha”. Por dias ficava enfileirando as bonecas e olhando uma e outra. Entre as bonecas estava lá a “petinha” sendo manuseada pra lá e pra cá.
Como toda criança costuma fazer, Sara tirou as roupinhas, os braços e foi especulando em cada parte da bonequinha, como se quisesse desvendar um segredo. Depois de explorar bastante acabou deixando de lado, pois já tinha tirado suas conclusões, como fazem geralmente as crianças com seus brinquedos. Depois de toda essa exploração, Sara passou a dizer que ela era marrom, sua mãe era “banca” e seu pai era “peto”. Há quem critique se falar em cor de pele, mas como trabalhar questões assim tão singulares e subjetivas como as que Sara observou e definiu? Apenas dizer-lhe isso ou aquilo não basta. Apenas colocar para ela questões críticas sobre a pele ter ou não ter cor, parece desvalorizar suas observações e conclusões.
Professores podem enfrentar esse desafio no dia a dia em que as colocações das crianças vão surgindo e aproveitar as oportunidades para dissipar o racismo ou conceitos que venham a ser mal interpretados. Nesse ínterim, nada melhor do que usar a literatura infantil como caminho, em que as crianças são convidadas a refletirem sobre questões da educação das relações étnico raciais, como por exemplo a ideia de cor da pele. Para tanto, cita-se obras consagradas como “Menina Bonita do Laço de Fita” de Ana Maria Machado, que trata do tema no lúdico em meio a imaginação. No livro, a criança é levada a refletir sobre as questões étnico raciais em que os personagens são referenciados pela beleza da menina negra. Entre outras obras, também destaca-se o da autora Kiusam de Oliveira com “O mundo no black power de Tayó”. A história conta que uma menina negra cheia de autoestima e que tem orgulho do cabelo crespo com penteado black power, enfrenta o bullying de seus colegas de classe enfeitando-o das mais diversas formas. Em seu cabelo coloca o mundo e assim vai dissipando o preconceito na valorização de sua cultura e sua origem. Não menos importante e carregado de significados, temos também “As tranças de Bintou” de Sylviane Anna Diouf. O livro conta a história de Bintou, uma menina negra que sonhava em usar tranças como sua irmã mais velha. Esse livro destaca a passagem da infância para a adolescência e diversos enfrentamentos de Bintou. A história é contada a partir de um contexto de que meninas não podem se preocupar com seus cabelos tendo de deixá-los curtinhos e só depois na adolescência que poderão tê-los compridos e cuidados com lindas tranças.
Outra maneira que pode ser utilizada para trabalhar a educação étnico racial é ensinar as crianças a fazerem a boneca abayomi. A boneca é negra, feita com pedaços de tecidos e com esse trabalho, professores mergulham no contexto da história em que as mães escravas tiravam pedaços de suas saias e confeccionavam bonecas para darem aos seus filhos um pouco de alegria. Através da literatura, da confecção da boneca e outras maneiras diferentes de se abordar o tema, professores podem reconstruir posturas de aceitação e respeito à diversidade de culturas e origens.
Voltando a Sara, será que temos cor de pele? Como poderíamos abordar essa questão levantada pela Sara em suas observações? Para Sara sua definição de cor de pele parece ser verdadeira e ainda compara com a pele de sua mãe e seu pai. Talvez, nesse momento, Sara foi se apoderando do conhecimento empírico, em que, através da observação chegou a definições que no contexto observado considerou certo. A madrinha certamente objetivou presentear Sara com uma boneca que se parecesse com ela, incentivando a menina a valorizar-se e a perceber-se. Porém como não houve mediação nem trocas, Sara tirou suas próprias conclusões. Nesse contexto, pode-se entender que o objeto dado a Sara veio a contribuir para sua formação, mas faltou interlocuções. Foi um aprendizado puro e por observação. O objeto em si veio carregado de significados quando Sara comparou com as outras bonecas, mas não houve diálogo em rodas de conversa, trocas entre coleguinhas, entre professores devido ao isolamento social. Sara construiu seu próprio conhecimento pela observação das bonecas e de seu núcleo familiar, formulando o conceito de pele marrom, preta e branca.
A primeira coisa que costumamos aprender sobre temas étnicos raciais é sempre a escravidão e muitas vezes com a visão dos professores que também não discutiam esse tema quando eram crianças. Dessa maneira, geralmente leva-se a criança a interpretar que a população negra era passiva e que simplesmente aceitou a escravidão. O que não é verdade, existiu uma grande movimento de resistência, resiliência e luta. Conhecer e dialogar sobre o assunto, possibilita uma análise crítica formando cidadãos que farão a diferença na sociedade. Caso não haja discussão, diálogo e críticas, pôde-se perpetuar o preconceito. Trabalhar de maneira crítica e construindo com a crianças em suas observações e leituras de mundo é a maneira que professores vêm buscando em seus planejamentos.
O processo de construção do conhecimento deve passar inicialmente por quem ensina, uma revisão crítica de si e do mundo, pois também aprendemos dessa forma e talvez até hoje não tenhamos nos questionado sobre o quão equivocado é nosso pensamento em frente a esse tema. O primeiro passo é mapear as consequências de como majoritariamente percebemos o outro, por qual motivo devemos estar ativamente cientes das nossas falas e ações para que, assim, não sejamos condescendentes com agressões etnico raciais.
Lembrando que a população brasileira é fruto de uma mistura étnica, pessoas pretas, pardas e brancas são vindas de todos os lugares, mas apesar disso é importante ter em mente que questões étnicas vão além do posicionamento moral individual, é uma questão estrutural. Desta forma, não basta apenas dizer que não é preconceituoso, é necessário combater, se posicionar.
Conclui-se que o principal meio para trabalhar a educação das relações étnicos raciais é a construção de saberes reflexivos, depois nomear as opressões, pois não é possível combater o invisível. Por isso reconhecer o preconceito, e não apenas ele mas todas as formas de opressão é a melhor forma de combatê-lo.
Professoras buscam nas literaturas contribuições e saberes necessários para valorizarmos nossas origens. Partindo das ideias da Sara, pode-se problematizar questões que surgem também em sala, dando visibilidade ao tema. Porém não basta selecionar livros infantis que tratam o tema étnico racial, mas buscar junto às crianças indagações e posicionamentos como o de Sara que se percebeu marrom. Partindo de uma vivência com sua boneca “petinha” percebeu-se em uma família composta pelo que diz ser, a mãe branca e o pai preto e denominou-se de marrom.
O que diria uma professora pra Sara ao contar a história de Branca de Neve? Afinal existem pessoas brancas como a neve? Deixar de contar a história também não parece uma postura adequada, mas buscar o pensamento crítico desde pequeno é o ideal para não crescemos pensando que tudo que escutamos é verdade absoluta. Sabendo-se que Sara tem apenas dois anos e se definiu como marrom seria oportuno levá-la a ter contato com diversos livros infantis e promover a temática dialogando e mostrando a Sara que somos realmente diferentes, porém devemos ter as mesmas oportunidades. Discutir sobre a cor marrom não parece ser oportuno em meio às conclusões de Sara, mas oportunizar novas observações e vivências em que possa questionar a definição de ter cor de pele. Uma boa oportunidade foi a madrinha presentear Sara com uma boneca preta, brinquedo que deve estar nas salas da educação infantil em que a criança inicia o contato com o mundo.
Sara se viu representada em sua boneca preta e se sentiu pertencente à sociedade em que vive, pois as bonecas pretas possibilitam o pensar sobre a diversidade, respeito, aceitação e afeto. Nesse sentido, uma educação antirracista, com resgate a igualdade, e com referência na cultura negra, seria algo a se pensar como ápice para uma sociedade mais justa. Uma alternativa seria, professores buscarem junto às famílias (em oficinas) em momento de interação confeccionarem bonecas, fazerem com que a família participe dessa ação, pois fazem parte dessa construção. Equipar a sala com brinquedos e livros que façam parte de diversas culturas é o caminho, em que a criança se sinta pertencente ao meio.
Diante do exposto, pode-se dizer que a educação das relações étnicos raciais perpassa por trocas estabelecidas no dia a dia. Que mediações são importantes assim como informações, mas deve-se respeitar o que a criança percebe e traz para a unidade educativa. A criança vem de um núcleo familiar ao qual é integrante e cada grupo tem suas singularidades. Professores podem e devem tratar a temática com naturalidade sem medo de errar ou acertar empoderando todas as “Saras” marrons, “petinhas”, amarelas, brancas e pardas. O importante é que essa criança está aprendendo a se valorizar e reconhecer sua cultura e sua origem. A boneca dada a Sara foi fundamental, contribuindo para que ela reconhecesse que existem muitas formas de ser, num determinado corpo, numa determinada cultura, geração e classe social, e que isso faz dela humana, que merece ser respeitada pelo que é.
Sara Dison Vasconselos é filha de Elis Cunha da Silva e Renato Vasconselos que cederam as informações sobre a Sara, propiciando uma contextualização do tema com o objetivo de facilitar ao leitor maior compreensão.
Espaços e amigos: